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Letra e Vídeo

Literatura musical

Tag Archives: David Bowie

Primeiro o Homem Azul procurou por Narud Narud, o Velho. Eles já se conheciam da Velha Terra, de muito tempo antes. Começaram a conversar numa mistura de farsi com hindustani e páli; o Homem Azul tentou introduzir inglês e katalawn na conversa, mas Narud Narud não entendia, ou fez que não entendia (o que às vezes vem a dar no mesmo).

Narud Narud ofereceu comida para que conversassem em Galimatar. Mas o Homem Azul não entendeu. Ou fez que não entendeu.

À distância, o Major Tom tentava entender alguma coisa e tirar algum sentido.

Nada.

Olhou para cima. O céu era branco com nuvens cor de chumbo. O próprio sol parecia branco, o que dava às pessoas um aspecto meio fantasmagórico, meio surreal.

Sem perceber, começou a se afastar da tenda do turco (ou árabe, ou iraniano, ou indiano, para Tom todas essas etnias eram a mesma merda) para olhar o que havia mais adiante daquela balbúrdia que parecia um mercado persa dos filmes que ele via quando criança na televisão (será que ainda existia televisão?, ele se perguntou).

Começou a olhar para as tendas e os prédios de madeira e alvenaria na ruela onde estavam. Não viu nada que se assemelhasse a antenas, ou sequer a fios ou cabos. As pessoas nas ruas usavam todos os tipos de roupas, mas não usavam relógios, nem telefones, nem nada que ele reconhecesse como tecnologia.

À medida que caminhava, as cores das construções iam adquirindo um aspecto mais vívido. Algumas pareciam ter acabado de ser pintadas. Tons de verde, de amarelo, de vermelho em sua maioria. Aqui e ali um tom de azul. Quase nenhum branco. E definitivamente nada de preto.

Subitamente Tom sentiu um cheiro.

O impacto foi tão violento que o cheiro parecia ter sido carimbado, espremido, esmagado direto para dentro do cérebro de Tom. Era um cheiro, um aroma, um odor, um olor, algo que ele nunca tinha sentido na vida.

Ficou completamente arrepiado.

Tão arrepiado que tudo parou naquele instante. Não conseguia ver nada à sua frente a não ser a entrada de um beco, reluzente como se tivesse sido emolduradas por guirlandas de ouro puro.
Era de lá que vinha o cheiro. E era exatamente para lá que ele ia.

Até sentir a mão pesada no seu ombro.

– Não vá para os Surúrbios – ele disse a Tom. – você não tem dinheiro para tanto.
– Você quer dizer subúrbios – Tom disse depois de um segundo, ainda bêbado de sensações.
– Não – disse o Homem Azul. – Nos subúrbios você paga para se foder. Nos surúrbios você paga para foder. Ou ser fodido. É diferente.

Tom parou para pensar. Fazia sentido.

Mas se lembrou das sondas. A lembrança ainda estava fresca. E doía.

– Seu senso de humor é estranho – disse Tom.
– Na minha vida passada ele era melhor – responde o Homem Azul.

O Homem Azul era um TR. Os Tábula-Rasa eram um grupo que decidiu seguir os costumes dos escritores japoneses do período medieval Edo; de tantos em tantos anos, quando passavam por alguma mudança grande em suas vidas, esses escritores costumavam mudar de nome, e passavam a refletir em suas vidas e seus escritos suas mudanças. Os TR fazem o mesmo: consideram que cada ressurreição é uma oportunidade de começar tudo de novo. mudam seus nomes, mudam de lares, abandonam suas famílias, não raro mudam até de planeta.

TRs só não escapam do sistema judiciário – que não segue os costumes deles. Se algum indivíduo é condenado a prisão perpétua, nenhuma ressurreição pode mudar isso. Só faz ampliar a duração da sentença.

Por isso cada planeta tem leis de imigração muito rígidas. A vida pregressa de cada pessoa é cuidadosamente investigada. Cada novo chegante é sondado de forma bastante completa antes de ser liberado – ou deportado.

No começo, a idéia era de que essas pessoas em estado de espera, esses desterritorializados, ficassem nos próprios espaçoportos ou teleportos. Mas a coisa foi crescendo. Hoje, espaçoportos, por maiores que sejam, não comportam tanta gente. Para isso foram criadas as Cidades de Espera.
Purgatório é uma Cidade de Espera.

Foi para lá que o Homem Azul foi quando chegou a Dama Rigel.

E é lá que ele vai encontrar seu destino.

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O Major Tom é um junkie. Viciadaço mesmo. Mas não tem nada a ver com o que se consumia entre os século dezoito e vinte e dois, drogas farmacológicas, sintéticas, injetáveis, bebíveis, cheiráveis, supositoráveis, grudáveis, pingáveis. Também não tem absolutamente nada a ver com as drogas virtuais (que de drogas, no fundo, no fundo, não tinham nada, mas que o efeito placebo era poderoso, isso era).

 

O Major Tom é viciado em raças alienígenas.

  

No século trinta e um, isso tem até um nome: Xenofilia. Ou, afirmam categoricamente os estudiosos mais linha-dura, pseudoxenofilia, porque todos sabem que alienígenas não existem.

 

Claro que também há outros estudiosos igualmente hardcore que afirmam cabalmente que qualquer pessoa que tenha nascido fora da Velha Terra (ou seja, quase todo mundo atualmente) é alienígena, portanto esse tipo de afirmação não faz o menor sentido, não tem a menor cabeção, e por falar em cabeção, o Major Tom (que não é major, nunca foi, e já está tão acostumado com essa sacanagem feita pelo Homem Azul que não consegue mais parar de pensar nele próprio como Major) se pega olhando de banda para Azul-de-Krishna.

 

Que é a coisa mais próxima que ele tem de um alien. Pelo menos em aparência.

 

Dizem que os mundos (ou as naves, ninguém sabe ao certo) do Coletivo Mahavira contém seres tão modificados geneticamente que eles provavelmente já nem se parecem mais com seres humanos tradicionais, papai-e-mamãe, old-terra-stáile.

 

Esse vício começou, segundo ele próprio conta sem o menor pudor a quem quiser ouvir, depois que ele foi seviciado pelos aliens. Vocês não sabem o que uma sonda anal é capaz de fazer a um pobre cristão, ele disse (muito embora ele tenha sido criado como anglicano no norte da Inglaterra, anglicano não praticante muito embora temente a deus de uma maneira assim meio vaga, como de resto costuma acontecer a quem estudou em Eton na infância – e quem estudou em Eton também não se surpreenderia muito com sondas anais, diga-se de passagem).

 

Mas se tem uma coisa que o cidadão-padrão do século trinta e um abomina, não consegue nem ouvir falar, porque e é a coisa mais próxima da pornografia que existe nessa época, é esse negócio de cara chato contando histórias de abdução, ainda mais quando envolvem contato físico com os aliens propriamente ditos.

 

Aí é uma merda.

 

 

*

 

O problema é que Azul-de-Krishna está hétero.

 

Nessa época, orientação sexual é o de menos. O chato é ter alguém no teu pé a toda hora querendo trepar. E O Homem Azul definitivamente is not in the mood for this. Ele está tão entretido em sua busca que toda a sua libido foi para a cabeça de cima, não há a menor de seu pau levantar.

 

Sem contar que o Major Tom não faz nem faria jamais o tipo dele. Se ambos ficassem numa ilha deserta, Provavelmente Azul iria preferir entrar em criossono em vez de fazer sexo com Tom. Mesmo sem equipamento de criossono. E nunca de bruços, claro.

 

Por isso o Major Tom treme e sua frio, ali, perdido no meio de Purgatório, enquanto Azul-de Krishna continua sua busca pelo Coletivo Mahavira. Porque todos sabemos que o Major Tom é um junkie.

 

 

 

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Puta que me pariu, é a primeira coisa que Tom pensa ao chegar em Purgatório. Um calor do caralho e um cheiro de esgoto a céu aberto que lhe embrulha o estômago depois do ar parado da nave que acabou de pousar depois de semanas no espaço.

         Count your blessings, Major Tom – é o que lhe diz o Homem Azul ao seu lado, como se tivesse lido seus pensamentos. – A coisa sempre pode ser pior.

De fato, podia. Purgatório foi construída para ser uma cidade-dormitório, nos arredores do Teleporto provisório, a fim de abrigar apenas algumas centenas de pessoas, algumas décadas atrás. O planeta de Dama Rigel por pouco não ficava fora da Faixa de Habitabilidade de seu sistema estelar; a temperatura devia ser mais fria, segundo o pouco que ele aprendeu na escola, mas era um mundo pequeno, quase um planetóide, e a quantidade de humanos ali já superou qualquer previsão de boas condições de vida há tempos. Hoje a cidade abriga duzentas mil pessoas e não há nada de provisório ali, a não ser os barracos do grande favelódromo, que parece estar sempre em vias de desabar.

O Homem Azul parte na direção da cidade a passos largos. Tom o acompanha; não há outro jeito. O sujeito foi o único que se dispôs a ajudá-lo quando ele foi abandonado no espaço.

 

*

 

O nome oficial atual do Homem Azul é Azul-de-Krishna. A certidão de nascimento original, perdida num cartório que já deve ter deixado de existir há séculos na Velha Terra, diz outra coisa, mas ele jurou que nunca mais pronunciaria esse nome.

Ele parte do princípio que a maneira mais segura para se esconder é se destacar no meio da multidão como quem não quer se ocultar. É por isso que seu corpo inteiro é azul – tintura nanodérmica – e ele não tem um pêlo no corpo. Veste calças de um modelo muito antigo, de metafibra imitando jeans preto. uma camiseta branca de algodão com gola em v e uma jaqueta de aviador com gola de pêlo completam o conjunto. Coturnos pretos de solado alto, que o deixa no total com dois metros e treze centímetros, a pessoa mais alta em Purgatório no presente momento.  Mesmo assim, ninguém olha para ele. Neguinho sabe que não se encara desconhecido em Purgatório.

Ele está ali em busca de uma utopia.

O Coletivo Mahavira.

 

*

 

O Coletivo Mahavira foi uma das primeiras coletividades a se separar do continuum trans-humano.

As naves-geração já haviam saído da Terra havia quarenta anos. Os veículos gigantescos tinham capacidade para milhares de pessoas cada e muito material genético e de bioengenharia. Seções inteiras das naves eram dedicadas à pesquisa aplicada.

Mas as coisas não foram tão simples assim no começo. O caso da Polidori, por exemplo, foi trágico. Junto com ela, foram destruídas outras três naves, cada qual levando cerca de quatro mil pessoas em criossono.

Mas, na confusão, muita gente jura que uma das naves, a Avalovara, simplesmente sumiu. Não há provas de que ela não tenha simplesmente sido destruída pelo empuxo gravitacional da anã branca para a qual a Polidori liderou escrotamente parte da frota, mas lenda e lenda, e chega um momento em que lenda urbana vira lenda galática, por pura e simples ordem de grandeza da exploração humana.

A Avalovara era uma nave improvável desde o começo: um consórcio de indianos e lusobrasileiros, um coletivo carnavalesco que incentivou grande parte das naves com suas experiências de modificação corporal. Foi talvez a única contribuição da Avalovara para o continuum trans-humano.

Os anos se passaram e as outras naves seguiram o planejamento original: colonizar todos os mundos possíveis das Faixas de Viabilidade num raio de cinco anos-luz da Terra. Ao longo do século XXII, os astrônomos descobriram, com observatórios orbitais cada vez mais sofisticados, que mesmo num raio tão limitado, a quantidade de mundos terraformes originais era suficiente para uma colonização de primeiro grau. Só nos sistemas de Eridani havia quatro. Rigel e Centauri forneceram mais cinco. Era mais que o suficiente.

A Frota Frankenstein – como foi apelidada pela imprensa – partiu entre os anos de 2209 e 2222.

 

*

Azul-de-Krishna entra num mercado. É uma das poucas construções de alvenaria: tijolos de cinza hiperleves se entrelaçam a vergalhões de ferrosopor formando as paredes e tábuas de aramadeira para compor o piso. São três andares com o melhor que Purgatório tem para oferecer: comidas como arroz-de-cristal e fava-de-mar da Velha África (e subitamente o Homem Azul se lembra com carinho de seu último jantar na Terra, mas já faz muito tempo), humanware como explantes temporários para comunicação e tradução, medicinais como frankinina-B para aumentar a longevidade, e um catálogo cheio de coisas que teriam feito a alegria de Borges. Mas ninguém se lembra mais de quem foi Borges. Não no século trinta e um.

O Homem Azul paga por dois pratos pequenos de um peixe cru cortado em fatias finas que Tom identifica vagamente como arenque, e dois copos de cerveja (a única coisa que Tom consegue realmente identificar nesse emaranhado de culturas insuportável para ele).

Enquanto Tom come ou tenta, O Homem Azul conversa com um homem troncudo, peludo e bigodudo que parece o dono do estabelecimento. Conversam em um idioma do qual Tom não entende picas; ali, naquela cidade infernal que só recebeu o nome de purgatório porque algum burocrata não quis pegar pesado, a maioria das pessoas fala em algo que o Major Tom entende como sendo katalawn. O Homem Azul nem precisa consultar nenhum implante: ele conhece bem o idioma. Teve chance de aprender no tempo em que passou embarcado na Passus Plau. A mesma nave que recolheu Tom meses atrás.

Tom não entende porra nenhuma. Ele fala apenas inglês, e ainda acha difícil estar tão distante assim no futuro.

Pois ele foi abduzido por alienígenas.

Há muito tempo. Na Terra. No século vinte.

Naturalmente, ninguém acredita nele. Mais de mil anos colonizando a galáxia e, tirando um fungo aqui ou uma espécie animal incomível ali, ninguém ainda viu um puto de um alienígena.

Mas o Major Tom sabe o que foi que viu. E, de qualquer maneira, ele não tem nada que o associe a essa gente. Não tem um único implante no corpo branco, magro e liso feito um lagarto.

Tudo o que ele quer é voltar para casa. Mas o Homem Azul disse para ele que a Velha Terra é apenas um retrato na parede, o que o fez ficar mais confuso ainda, porque ele não entendeu o que o sujeito quis dizer com isso. Só entendeu uma coisa: tão cedo ele não vai pisar no solo da sua velha Inglaterra. E ele está com muito medo do que vem pela frente. Só espera que seja mesmo pela frente.

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